Exercícios lúdicos do arco da velha

Eis que me peguei dia desses consultando, após um resgate improvável, alguns papéis datilografados entre 2012 e 2013, que remetiam a um período em que tínhamos, em nossa República da Bela Vista, uma Smith Corona – provavelmente da década de 1960 – repleta de pequenas avarias. Um desses arquivos, felizmente, foi salvo pelos descuidos daqueles tempos em que datilografávamos porcamente e quase tudo ia parar na lixeira. Tal registro, salvo aleatoriamente pela negligência de nosso desleixo, merece aqui a transcrição, por se tratar de uma atividade lúdica que cultivávamos naquela fase sub-satelital, em que orbitávamos a USP: lavrar contratos para atividades triviais, cotidianamente bestas. Desde lavar a louça até combinar as faxinas: tudo era objeto de contratos redigidos ao sabor ligeiro de nossos humores e da disposição de escrever para apenas escrever. O que valia naquele então era o advento lúdico daqueles hoje saudosos momentos.

A bem da verdade, era uma época em que nossas cabeças não estavam preocupadas com o porvir, com os fatos consumados, hoje históricos, que se desdobrariam perante nossos olhos incrédulos e habituados àquela primavera efêmera, em que esse país ineditamente encontrava-se saudável e, no auge de nossa inocência, imaginávamos que o decurso da história seria apenas mais um lance feliz e ordinário do que aqueles dias foram, ou seja, uma euforia social e estritamente privada que beneficiava a quase todos, em um contexto favorável às nossas aspirações e objetivos que certamente se perpetuariam ao longo de nossa indecorosa história. Tempos depois, nos vimos num beco sem saída, e nele malogramos, perante o fim do túnel, surpreendidos com os eventos que se sucederam e que escancaram a nossos olhos virgens a realidade nua e crua em contornos muito mais perversos do que supúnhamos naquele então.

O registro em questão tratava-se de uma permuta: Mauro me emprestaria uma jaqueta surrada de couro para que eu pudesse suportar o próximo inverno sem bater minhas mandíbulas que encaravam um frio que já não existe mais; em contrapartida, eu lhe daria o pôster confeccionado especialmente para o début da Onagra nos palcos da vida.

Feito o preâmbulo, segue a transcrição de uma dessas adoráveis brincadeiras, levemente editada para fins de compreensão, visto que a máquina não permite sequer um toque distraído que redunda em irrevogável equívoco:

INSTRUMENTO PARTICULAR DE CONTRATO

Mauro dela Bandera Arco Júnior, brasileiro, solteiro, residente e domiciliado na Avenida 9 de julho, nº XXXX, apto. XX, Bela Vista, São Paulo – SP, doravante o contratante; e Diego Felipe Scalada (em constante decadência), portador do R.G nº XX.XXX.XXX-X, residente e domiciliado no ibid do contratante, firmam na presente data, perante a testemunha Diego Coiado do Amaral, Adevogado, inscrito sob o nº XXX.XXX, na Ordem dos Velhos e Remendados, Ilustríssimos Advogados do Brasil, o presente contrato de obrigação de fazer consistente, em entrega de coisas certas, sem haver má-fé, dolo, mandinga, tramoia, trapaça e tretas, nos seguintes termos:

Artigo I

Diego Felipe Scalada, doravante o contratado, compromete-se, com muita barganha, a entregar uma jaqueta de couro tomada do contratante em regime de comodato e, que fique bem claro, do contratado àquele.

Artigo II

O contratado compromete-se, ainda, a realizar a restituição do bem supracitado no mais tardar até o fim do próximo inverno, estando o bem em perfeitas condições e com muita disposição de fazê-lo, sob pena de admoestação verbal, injúria à mãe e vilipêndio à dignidade do contratado, coitado. 

Parágrafo único

Se mesmo assim ocorrer o descumprimento da obrigação, compromete-se outra vez o contratado a brindá-lo com loas e benefícios, odes e ditirâmbos, cercando-o de respeito e admiração, na exortação ao benefício da filosofia, fazendo com que o contratante permaneça em constante ilusão, delírio e pobreza.

Artigo III

O contratado compromete-se, uma vez mais, ao resgate do material gráfico referente à apresentação do grupo musical Onagra Claudique nos palcos do Sesc Pompeia no dia 9 (nove) de outubro de 2012, para o contratante, vulgo Papaura que, por sua vez;

Artigo IV

O contratante, uma vez em poder do objeto supramencionado, compromete-se a realizar o devido emolduramento e penduramento, alienadamente (que fique bem claro) do então adorno na parede direita junto à sala de estar em cujos signatários, com pompa e não menos finta, padecem e parcamente habitam.

Artigo V

A prestação atribuída ao contratante deverá ser saldada no prazo máximo de dois anos bissextos do já amiúde mencionado.

Parágrafo único

O não cumprimento da obrigação por parte do contratante acarretará, sem sombra de dúvidas, numa enxurrada de prantos, lamúria, tristeza e indignação de todos que no imóvel receptor vivem ou frequentam. 

Artigo VI

O ato de emolduramento, traslado, avaliação e opção estética do material objeto do presente contrato fica sob a inteira e exclusiva responsabilidade do contratante, resguardando-se as custas equivalentes e a responsabilidade de saldar tudo às expensas do mesmo.

Artigo VII

O objeto do presente instrumento particular de contrato permanecerá devidamente emoldurado e exposto na parede do imóvel onde residem o contratante e o contratado até o integral e recíproco cumprimento das obrigações aqui elencadas.

Artigo VIII

Estando devidamente acordadas, as partes subscrevem o presente instrumento como atestado de boa-fé recíproca e incontestável, diria até nunca antes vista – nem mesmo nos tribunais ancestrais de Roma.

São Paulo, 29 de novembro de 2013.

Firmam:

Mauro Voadora

Racto

Tattu


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