Comprei uma geladeira. Não é bem uma Brastemp, dessas que vemos nas melhores casas, mas cumpre sua função: é econômica, ampla e quase barata. Afinal de contas, o que importa é que comprei uma geladeira, singela, imponente e alta. E para o desespero geral das más línguas gerais – a exemplo da síndica que, quando me viu subindo pela escada com aquele trambolhão, disse aquela aquisição ter sido um exagero –, geladeira minha escolho eu, não o olho gordo dessa gente que só vê o que os olhos ocultam, sem se dar conta de que, ora, agora sim, tenho uma geladeira à altura de minhas ambições. Novíssima, em aço escovado, dividida em fartas prestações no crediário.
O mesmo amor que conjuga seres animados também enlaça uma alma solitária e um eletrodoméstico, seja este uma Brastemp ou não. E confesso… Foi amor à primeira vista! Tão logo entrei na loja de departamentos, com ela me deparei, se insinuando, locupletando comodamente as lacunas de minhas expectativas. E não, não tive outra reação senão sofrer resignado os influxos da paixão. Se foi um achado? Claro que não! Tenho certeza de que ela já me aguardava naquela queima de estoques, cansada de ser apenas aberta, ligeiramente apreciada, quando o que ela queria mesmo era estar plugada na tomada, gelando meus víveres, e claro, sentindo-se gelada! Pois como diz o ditado: “geladeira desligada em lar nenhum faz sua morada”. Não basta? Pois tome esse verso de Cazuza, escrito ao inspirar-se em nossa futura união: “nossos destinos foram traçados na maternidade!”.
Hoje tenho discernimento suficiente para refletir sobre o que de fato nos irmanou como unha e carne. Ora, foi seu design discreto, sua inspiração nórdica, seu charme sueco! Vladimir, o vendedor, até tentou me dissuadir e me mostrar muitas Brastemps, mas ao ver meus olhos vidrados, passamos imediatamente à negociação daqueles 470 litros de promessas geladas em pleno verão das Parahybas.
Concluída a transação, me senti honrado e civil, me senti de fato verdadeiro cidadão, desses que saem para comprar uma geladeira e voltam com a nota fiscal da transação concluída na mão. Não é uma Brastemp, reconheço, mas pouco importa! Passados quase três meses, seguimos inseparáveis em nossa lua de mel glacial; importa mesmo é que comprei uma geladeira, com frost free e função drink express. Isso sem mencionar seu freezer, espaçoso como um antigo Chevrolet, de modo que hoje posso sair pelo interior disputando torneios de truco à toa – agora já tenho onde guardar minha leitoa!
Nosso conluio não foi, sem sombra de dúvidas, efêmero, e não posso passar pelo meu corredor-cozinha sem parar para observá-la, ou melhor, apreciá-la: é uma geladeira grande e vasta, a despeito do que dizem as más línguas, dentre elas a de meu analista que, num rompante lacaniano, alegou que eu havia projetado minhas frustrações de 2024 na aquisição daquela – segundo ele – câmara fria!
É certo, não poucas vezes abro sua porta apenas para sentir um sopro gelado refrescar minhas carnes pelo vapor do calor, em lenta cocção, cozidas. Mas daí a dizer que descontei minhas frustrações é coisa de recalcado! Aliás, não apenas pressinto, mas estou seguro de que, em suas sessões com seu analista, ele, o analista, confessa, aos choramingos, os ciúmes que sente de minha nova namorada. Ora, duvido que Lacan tenha tido uma geladeira tão grande e tão jeitosa como a minha. Poder aquisitivo? Ambos, meu analista e Lacan, têm mais do que eu. Mas bom gosto ao escolher esse formidável eletrodoméstico? Duvido e aposto – e olha que nem é uma Brastemp!
O difícil mesmo é a separação – não a do analista – mas a de minha geladeira. Às vezes, quando estou na rua sofrendo os influxos implacáveis do sol invicto, para conforto de minh’alma, penso nela, e só de pensá-la já me gelo todo! Então é hora de voltar pra casa e abrir uma gelada que minha namorada cinza, com tanto afinco e dedicação, religiosamente me guarda.
Não é, definitivamente, uma Brastemp. Mas às favas meus detratores, pois agora sou titular, como muitos civis por aí, de uma formosíssima, bündcheniana geladeira. Dizem as más línguas que entrei numa fria! Entrei mesmo, mas não sem provar que às vezes é bom entrar numa fria!!!
Me conforta o simples fato de que, dentro de seis meses, estará paga. Então será só minha, e nela hei de conservar e investir tanto minhas memórias conservadas, meus arrozes e demais derivados de arrozes, arduamente conquistados, quanto os rendimentos que terei de ganhar a fim de saldá-la e tê-la, por fim, instalada – até que o destino nos separe – em nossa cozinha alugada.

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