Acordo com a notícia da morte de George Foreman, um monstro dos pesos pesados, o último a subir entres os maiores pugilistas da Era de Ouro que marcaram o boxe na década de 1970. Imediatamente, recorro ao Youtube a fim de rememorar os grandes momentos de Big George, como era conhecido. Após muitos anos, revi os grandes nocautes protagonizados por Foreman, consumados, quase sempre, contra excelentes atletas cujas vidas foram marcadas pelas adversidades, contravenções e tragédias. Todos eles, sem exceção, vítimas da força descomunal e da direita insuperável de Foreman.
Vejo o canadense George Chuvalo, dois dos três filhos mortos de overdose, preso ao corner, recebendo resignadamente as pedradas que Foreman lhe desferia. Os que estiveram no Madison Square Garden naquele dia de outono, em 1970, assistiram a uma verdadeira e cruel carnificina. A disparidade entre forças naquela cena é tamanha que nossa reação é torcer para que o árbitro interrompa a luta – por fim é o que se dá. Chuvalo não vai à lona, mas sem a intercessão do árbitro, uma tragédia catastrófica certamente ocorreria, pois o colossal Chuvalo se recusava a cair.
Três anos depois, em Kingston, Foreman desafia o enérgico Joe Frazier, defensor do cinturão dos pesos pesados pela WBA, e precisou de apenas dois rounds para Big George despachá-lo. Frazier, com seu jogo de pernas rápido e seu peculiar movimento pendular, oferece o ensejo perfeito à estratégia de Foreman: esperar Joe oferecer-lhe a face – em seu incessante vai-e-vem – para aplicar-lhe um uppercut indefensável. E é justamente o que no duelo se concretiza: Foreman, ungido pelo dom da perfeição, consegue dois knockdows ainda no primeiro round. Bem, o que se viu no segundo foi uma chuva de surra de George contra um Frazier resignado, como se estivesse decididamente fadado a apenas apanhar. Joe cai, ao todo, seis vezes, e Foreman sagra-se campeão mundial dos pesos pesados pela primeira vez.

Revejo também o brutal nocaute contra o poderosíssimo Ken Norton, num contexto que se afigura como uma espécie de trabalho sujo que alguém deveria fazer. E Foreman, solícito, se dispõe a derrubar mais um gigante dos pesos pesados com uma espontaneidade espantosa. “Hei, me prepare um chá de hibisco, vou ali sovar a cara de um infeliz e já volto”, é a frase que me vem à mente após ver George fagocitar Norton sem dó nem piedade no Poliedro de Caracas, em março de 1974. Não se trata de um knockout qualquer, visto que Foreman encontra-se em plácido e inequívoco estado de graça. Mais, o ímpeto de agressividade apurada e a inabalável convicção da vitória impelem um obcecado George a se aproveitar da guarda aberta de seu oponente para trucidá-lo como poucas vezes se viu na história dos pesos pesados. Foreman foi um mestre de cerimônias naquele dia, e celebrou, ali, não uma luta, mas um matrimônio sério e monogâmico entre Norton e a lona em apenas dois assaltos.
Em outubro do mesmo ano, George Foreman aterrissa em Kinshasa, então capital do Zaire – hoje República Democrática do Congo –, envolto numa aura cercada de mistério. Desce as escadas do avião acompanhado apenas por seu cão de estimação, numa postura lacônica, pouco amigável e avessa aos holofotes da imprensa. Ao passo que seu oponente, Muhammad Ali, protagoniza um verdadeiro espetáculo midiático: alguns de seus treinos eram abertos, seus desfiles pelas ruas de Kinshasa, diários, e as provocações a Foreman, uma espécie de obsessão. O gênio e boquirroto Ali se presta a uma campanha de difamação contra Big George jamais antes vista. Os zairenses, ante o comportamento monossilábico de Foreman e os apelos populistas de Muhammad, se voltam contra Foreman, a despeito dos especialistas cravarem, quase sem exceção, que o outrora Cassius Clay não duraria dois rounds.
A era de ouro dos pesos pesados viria a se consagrar no imaginário popular porque seus três maiores expoentes, Ali, Frazier e Foreman, tinham estilos complementares, porém antagônicos: o de Ali, perfeito para ser batido por Frazier; o de Frazier, excelente para ser surrado por Foreman; e o de Foreman, viríamos a saber depois, e de forma surpreendente, suscetível à estratégia e à sanha implacável de Ali.
The Rumble in the Jungle, como ficou conhecido o embate entre Muhammad e George, é sem sombra de dúvidas a maior luta entre pesos pesados do todos os tempos, e um dos maiores momentos da história do esporte, uma vez que seu desdobramento contrariou a previsão unânime entre os experts que davam Ali como natimorto naquela luta. No segundo semestre de 1974, Foreman vivia seu auge. Portanto, o prognóstico dos especialistas não era insensato, tampouco descabido. O problema maior era a incógnita estrela emergente de Muhammad Ali – que naquele então fazia uma campanha de recuperação de seu prestígio como pugilista após três anos banido do esporte por se recusar a prestar o serviço militar no Vietnã.
Ali foi perspicaz ao reconhecer de antemão que, se partisse para uma trocação franca com Foreman, não passaria do terceiro round. Para tanto, adotou uma estratégia que se mostraria perfeita – e que ficou conhecida como rope-a-dope. Muhammad, aferrado às cordas, fechou a guarda e ofereceu o lombo às investidas de Foreman. Os rounds se sucediam com franca vantagem a George. Tudo levava a crer que nenhum dos dois sucumbiria e que aquela contenda seria decidida pelo escrutínio dos juízes – certamente favoráveis a Big George. Contudo, no oitavo round, Foreman, absolutamente exaurido após tantos ataques se mostrarem inócuos, e com ambos os rins carcomidos pelos golpes discretos porém contumazes de Ali, o vê ressurgir como uma fênix para levá-lo à lona em questão de 40 segundos – para a incredulidade de todos.

Anos depois, Foreman reconheceria que ter perdido para Ali fora a melhor coisa que lhe ocorrera ao longo de sua vasta carreira. A derrota, no boxe, independentemente das dores e dos horrores que inflige no adversário, certamente humaniza, pois escancara o flanco da fragilidade humana, revelando nossas chagas mais íntimas. Após aquela luta, Big George reconhece seu lado vulnerável, e tocado por uma espécie de revelação, vê despertar em si um lado espiritual e missionário, passando, dali em diante, a ser um servo do evangelho. Seu envolvimento com a fé é tamanho que, em 1977, após sua segunda derrota como profissional, anuncia precocemente sua saída dos ringues para servir apenas aos desígnios divinos. Funda a igreja Senhor Jesus Cristo, no Texas, seu estado natal, onde passa a pregar como pastor.
Os que viveram aquela era de ouro do boxe foram certamente privilegiados: em 1971, viram Frazier impor a primeira derrota a Muhammad Ali em sua carreira profissional; em 1975, viram também Ali “debochar” de Frazier nas coletivas de imprensa que antecederam a terceira e última luta entre os dois – conhecida como Thrilla in Manila. Em uma das entrevistas, Ali, defensor e militante ferrenho dos direitos civis da comunidade negra estadunidense, irrompe perante os microfones segurando nas mãos o boneco de um macaco, para em seguida fazer uma alusão no mínimo infeliz entre Joe e o primata. O polêmico e controverso Ali, como costuma se dar entre os gênios irascíveis e suscetíveis aos erros mais rotundos, lamentavelmente profere: “será um killa, e um thrilla e um chilla, quando eu pegar aquele gorila em Manila”. A iniquidade, infelizmente, prevaleceu, e após uma cruenta e renhida luta que durou 14 assaltos em condições extremas e sob o úmido calor filipino, o técnico de Frazier pede a interrupção do combate, consagrando Ali uma vez mais como um dos maiores do pugilismo.
Quis o destino, cruel com Frazier em 1975, finalmente se voltar contra Ali, já em 1980. No embate entre o maior de todos os pesos pesados à época e Larry Holmes, ex-sparring de Ali, o que se viu foi uma aula magna de como espremer, constranger e extraviar um adversário. Muhammad Ali já não estava em sua melhor forma, e muitos disseram que Holmes também não queria aquela luta, pois sabia que estava em plenas condições de promover uma carnificina contra um amigo e oponente – pouco importa, se subiram no ringue, como machos que são, que cada um defenda seu culhão.
Naquele dia, Holmes pôde restituir à ínfima minoria que não torcia a favor de Ali algum laivo de dignidade. Valendo-se de sua avantajada envergadura, o assassino de Easton desferiu uma saraivada de jabs potentes de direita, minando paulatinamente os alicerces de Ali que, cansado, viu Holmes se agigantar, fazer-se figura onipresente no ringue e brincar aleatoriamente com sua massa inerte. Ali foi surrado nos quatro corners, ao passo que Holmes foi o artífice de um dos maiores momentos da história do boxe: mostrar ao mundo as fragilidades do há anos imbatível Ali. A certa altura daquela contenda, era evidente no olhar de Muhammad Ali o mais puro e perfeito desespero, a potência quase inédita de sua incredulidade. Mais do que isso, o mundo testemunhou naquela luta um Ali vulnerável como nunca antes, graças àquela surra humanizante e tão apelativa à misericórdia que, Angelo Dundee, técnico de Ali, pediu a interrupção do embate, devidamente acatada pelo árbitro. Por fim, o mentor Ali finalmente provara o sabor edificante de ser vítima de um knockout de seu pupilo, técnico, mas ainda assim um knockout.
Em 1987, dez anos após seu recesso dos ringues, Foreman anuncia seu retorno com o claro intuito de levantar fundos para a associação filantrópica juvenil que acabara de fundar em Marshall, Texas. Sua reestreia foi uma prefiguração do que viria a ser a segunda versão de Foreman na nobre arte. Oscilando na casa dos 140 quilos, o pesado e lento Big and Fat George foi gradualmente adquirindo sua melhor forma dentro das limitações impostas pela idade, deixando uma longa e variada fila de desvalidos vítimas de seus implacáveis nocautes por onde passou. Nesse ínterim, dois brasileiros tiveram a honra de terem suas ventas desfiguradas pelo potente e infalível punch de George. O primeiro, Manoel “Clay” de Almeida, que em 1989 suportou quase três assaltos completos até que o árbitro, com muita sensatez, decretasse o fim daquele genocídio por nocaute técnico. O segundo, Adilson Rodrigues, o bom e velho Maguila, já no ano seguinte – e em confronto preliminar entre a estrela da vez, Mike Tyson contra Henry Tillman. Maguila até conseguiu suportar bem o primeiro assalto para, no segundo, receber um direto frontal perfeitamente encaixado, um verdadeiro piparote foremaniano. As cenas que se sucederam à colisão da fuça de Adilson Rodrigues contra o punho pétreo de Foreman são dignas de pena e estarrecimento: vemos o campeão sul-americano estatelado na lona, olhando para o nada e completamente alienado de suas faculdades cognitivas. Em uma ocasião póstuma, recuperado o siso e o juízo, Maguila teve a decência de admitir: “esse velho bate como uma britadeira!”.
O confronto que opôs em lados distintos do ringue nosso campeão Maguila e o então gigante Foreman parece-me de uma imprudência extrema. Muitos anos depois, por volta de 2014, Maguila foi diagnosticado com encefalopatia traumática crônica – a outrora intitulada demência pugilística. Credite-se a doença degenerativa de nosso maior peso-pesado àquele direto recebido em Las Vegas 24 anos antes.
Foreman, por sua vez, foi acumulando vitórias em seu cartel – a maioria por nocaute –, provando que já não subia aos ringues apenas para sustentar seus caprichos filantrópicos. George queria mais. Em 1991, encarou o detentor do cinturão dos pesos-pesados pela World Boxe Association, Evander Holyfield e, após doze assaltos, perdeu o confronto, disputadíssimo, por pontos. Três anos mais tarde, veio-lhe uma segunda chance. Foreman encara o canhoto e ágil Michel Moorer, que havia suplantado Holyfield e defendia o cinturão da categoria.
Essa luta é especial não apenas para a consagração de Foreman, mas, indubitavelmente, para a história do boxe, por ter colocado frente a frente não apenas dois dos maiores lutadores da época, mas dois estilos completamente distintos: o clássico, de George, menos técnico e com menos ímpeto de golpes, mas muito mais resiliente a suportar uma boa e tremenda surra; e o moderno, representado por Moorer, que conjugava força física e técnica extremamente apurada – escola muito mais afeita a combates curtos, consumados, via de regra, por nocautes nos quatro primeiros rounds. Foreman, como um velho baluarte tombado pelo IPHAN, manteve-se prostrado no centro do ringue com seu jogo de pernas lento, quase inamovível, ao passo que o jovem Moorer, entre uma estocada e outra, valia-se dos poucos momentos de vulnerabilidade de Foreman para desferir suas sucessivas saraivadas de socos, que iam se acumulando à medida que os rounds se esvaíam. George, contudo, suportava, ou melhor, penosamente resistia, e de tanto resistir, a luta arrastou-se ao décimo assalto. Michael, a essa altura, estava em franca vantagem segundo a contagem dos três juízes da contenda.
Então sobrevém o momento apocalíptico e luminoso: Foreman, aos frangalhos e provando o pão que Moorer o fizera amassar, com a cara já inchada e completamente desfigurada, pareceu lembrar-se daquela longínqua noite de 1974, em plena canícula do Zaire, mais precisamente do oitavo round, quando viu Ali subitamente crescer e crescer como se George estivesse lutando contra dois dele, como se Ali estivesse fazendo jus à sua alcunha de “the greatest”, pronto a derrubá-lo em 40 segundos, e invocando talvez essa reminiscência fundamental, decidira usar o artifício de seu maior algoz. Num rompante de fênix, a direita de Foreman, numa ofensiva aparentemente trivial, encaixa-se perfeitamente contra o maxilar de Moorer, que imediatamente desaba em decúbito dorsal, abrindo os braços como Cristo na cruz e apelando a algum deus – e naquele momento qualquer um servia – a providencial intervenção divina em prol de sua vida – que parecia descer pelos ralos do inferno e do ignominioso opróbrio do esquecimento.
O maior momento do boxe é efêmero, dura de fato muito pouco – segundos, eu diria –, e começa no preciso momento em que um golpe bem desferido encaixa-se perfeitamente na cara adversária, sucedido pela velocidade terrível e vertiginosa da queda – mas lenta para a vítima –, durante a qual tudo se passa na cabeça do perdedor – em geral, figuras desbocadas, contadores de bravatas, seres adulterados por alguma sobredose de testosterona realmente macha. Nesses momentos graves, conhecem e, mais do que isso, dão a todos a prova de sua fragilidade vulgar e flagrante.
O olhar completamente perdido de Moorer, sem entender bulhufas, é a prova inequívoca de que naquela luta ele provara o mesmo que Foreman provou contra Ali no Rumble in the Jungle, mas naquele confronto o outrora derrotado George Foreman sagrara-se campeão mundial dos pesos pesados, pela segunda vez, e aos 45 anos, obtendo um recorde até hoje imbatível: o mais velho a lograr essa dificílima façanha. De lambuja, infundiu no jovem Moorer a surra humanizante – sempre dentro dos ringues e sob as regras estritas do esporte, é claro – encerrando sua carreira de forma digna nos anos posteriores, como um pugilista decadente, perdendo um e outro pleito para jovens que, se o enfrentassem em seu esplendor pugilístico, certamente não teriam durado dois assaltos contra a força indecorosa de Big George e seu inesquecível cruzado de direita.
Em 1996, o mundo assistiu a um decrépito Muhammad Ali acender, tremebundo, a tocha olímpica na abertura dos Jogos de Atlanta, enquanto Foreman, incansável, disputava suas últimas contendas nos ringues – no apagar das luzes de sua vitoriosa trajetória. Credite-se ao velho George essa coisa que atribuíram a Ali equivocadamente como Mal de Parkinson, e que o acometera em virtude das tantas pancadas que o bailarino das lonas e cordas recebera naquele Zaire repleto do horror promovido por Mobutu Sese Seko nos idos de 1974.
Do início de sua carreira profissional ao fim – geralmente deprimente, e marcado pelas máculas dos que se dispuseram a dar e a receber crepitantes pancadas – não há nenhuma semelhança entre o jovem George, taciturno, que desembarcara em Kinshasa com cara de poucos amigos, e aquele último Foreman, bonachão, prestes a se aposentar, e afeito às entrevistas, quando se dava ao prazer de longas conversas com jornalistas. Em seus últimos momentos nos ringues, Foreman revelava abertamente as dores e delícias de sua longeva trajetória como pugilista. Conhecera, por fim, nas surras humanizantes, a volúpia de ser o que era: um homem íntegro e pronto a seguir dando e recebendo pancadas pela vida toda – se a vitalidade o permitisse, obviamente.
Desde a derrota para Ali em 1974 até sua precoce e primeira aposentadoria, o estafe de Big George tentou, sem sucesso, uma revanche daquela que ficou conhecida como “A luta do século”. As razões pelas quais Ali ou sua entourage não topou aquela que certamente teria sido a segunda luta do século, não sabemos, mas podemos intuir. Muhammad Ali foi, sem sombra de dúvidas, o maior atleta de todos os tempos, por tudo o que protagonizou nos ringues – e sobretudo fora dele. Mas olhando apenas a nobre arte, e analisando apenas os feitos que elevaram os postulantes à glória pugilística dos pesos pesados ao lugar mais alto, do qual todos foram digníssimos merecedores, creio não haver dúvidas sobre quem tenha sido o maior.
Tudo o mais são anedotas, grelhas elétricas e milhões de dólares na conta.

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