Retardar la Puesta

João Pessoa, 21 de abril de 2022, horário solar (UTC-2), horário civil (UTC-3)1

Morar no ponto mais oriental das Américas é se render inerme aos caprichos implacáveis do Sol. Podemos, como fazem alguns sábios e ousados indivíduos – perante os quais nutro uma pontinha de inveja –, ignorar solenemente os ponteiros do relógio e viver alheios aos ditames impostos por esta engenhosa máquina de marcar o tempo; podemos, ainda, como coléricos ensandecidos, vituperar o astro-rei e toda sua abundância solar convertida em calor e, ao fim e ao cabo, toda e qualquer súplica, praga ou sortilégio terão sido em vão. Se há duas leis naturais que suscitam horrorosa e inconsolável fúria em tiranos, ditadores e demais homúnculos dotados da ambição de Júlio César e da megalomania de Nero, uma vez que incapazes de alterá-las, estas são a Lei da Gravidade e a movimentação do Sistema Solar. Não há decreto que atrase ou adiante o nascer e o pôr do sol, tampouco há, até onde se sabe, um mecanismo físico viável cuja operação limite ou altere a lei de Newton. Ambas são leis inflexíveis, felizmente incorruptíveis ante a mais perversa de nossas vontades. Em contrapartida, o engenho humano concebeu o relógio, as demarcações meridianas e a padronização das horas segundo o arbítrio que melhor lhe conviesse. E assim, já que não podemos controlar a velocidade ou a direção de deslocamento do sol, podemos, por outro lado, enquadrar regiões em fusos que, pela lógica natural, não necessariamente correspondem àquele a que pertencem segundo a divisão, mais justa e racional possível, do planeta cortado por meridianos. A epítome do que vos exponho pode ser cabalmente ilustrada pelo exemplo chinês. Decerto, um dos “lampejos” mais infelizes do todo poderoso e líder supremo Mao Tse-Tung, uma vez repelido o Kuomintang, agora encurralado em Taiwan, e após empreender a Grande Marcha do Exército Vermelho – uma das aventuras mais desvairadas da história –, foi estabelecer um único fuso horário ao quarto maior território do mundo – embora o país atravesse cinco meridianos e apresente uma silhueta longitudinal – no intuito de simbolizar a unidade nacional. Sem sombra de dúvidas, se Mao contasse com a protuberância demográfica chinesa a fim de colher soluções menos extenuantes para representar a unidade tão almejada pelo Partido Comunista Chinês, certamente teria extraído dessa hipotética consulta popular uma miscelânea de outros expedientes a que Mao poderia ter lançado mão para congregar os chineses – gerando menos distorções e sofrimento horário a seus bilhões de habitantes –, mas isso já é assunto para outras tertúlias. Fato inequívoco é que, quando os primeiros raios solares tocam a porção mais oriental da China, do outro lado, em seu extremo ocidente, mais precisamente nos territórios autônomos de Xinjiang e Tibete, ainda é noite cerrada e das mais tenebrosas.

Aqui, no ponto mais oriental das Américas, sofremos ou nos refestelamos com o dia, a depender de como o encaramos, em virtude tanto de sua intransigência solar quanto do fuso horário levemente “arbitrário” adotado nestas latitudes. Ora, o “Portal do Sol”, alcunha pela qual a cidade é conhecida por receber os primeiros raios solares do continente americano, deveria, em tese, adotar – segundo a divisão meridional concebida pelos homens, embora não isenta do arbítrio inerente a qualquer padronização – um fuso horário distinto, ou seja, o UTC-2, tal como se faz na paradisíaca Fernando de Noronha – apenas as regiões insulares do nordeste brasileiro seguem este fuso – devido a seu enquadramento meridional. Contudo, seguimos o UTC-3, fuso de Brasília, cidade que dista daqui 1.718 quilômetros em linha reta a sudoeste. Portanto, impera nesses tristes e belíssimos trópicos uma pequena distorção, uma espécie de ruído rosa, um lapso em seu afã ansiogênico, em nada comparável aos disparates do tirânico horário chinês, mas ainda assim capaz de alterar a rotina de forasteiros e reger nosso cotidiano com a austeridade e a sisudez de Margaret Thatcher. Hoje, por exemplo, o sol nasceu às 05:22, mas se seguíssemos o fuso em que nos enquadramos, meridionalmente, nasceria uma hora depois, às 06:22. 

Em outros momentos do ano, sobretudo em novembro, podemos vislumbrar o sol despontar no horizonte logo às 04:51, o que significa que, a partir das 4:20 da madrugada, já contamos com a presença da luz da alba que precede o nascer do dia propriamente dito. Essa ansiedade do sol em se fazer presente nestas paragens também se traduz numa saída de cena demasiadamente precoce – quase um coito interrompido. O crepúsculo, momento tão ansiado durante a canícula do verão, se inicia por volta das cinco da tarde; às cinco e quinze, faz-se as trevas. Por morar ao lado de um colégio, é com grande estupefação que observo crianças de sete e oito anos em trajes escolares, cada qual com sua lancheira estampada com motivos infantis, saindo das aulas vespertinas em pleno breu, às 18:00. Há algo esdruxulamente insólito nessa cena, a meu ver análoga a uma vaca pastando no terraço de um arranha-céu em Upper East Side, Pavlova dançando balé no candomblé, baianos de ceroulas sassaricando na Sibéria. Com o perdão da digressão, reconheço que, por ter crescido no meio-oeste, próximo à linha imaginária e tortuosa que demarca a transição para o GMT-4, também eu quando criança chegava à escola para a aula matutina com “o dia” ainda “noite” durante o inverno, todavia tratava-se de um fenômeno apenas sazonal, muito distinto da realidade trevosa e permanente das aulas vespertinas ministradas em Juan Persona. 

Enfim, faço esse extenso rodeio monotemático para afirmar com alguma contundência que o regime solar nesta ponta do Nordeste brasileiro destoa muito das demais regiões do país, de modo que, para um nascido no Sudeste, esse fenômeno abunda em estranheza e demanda uma generosa disposição à adaptação. Tudo por aqui começa e termina mais cedo, ao contrário, por exemplo, da Argentina, cujo fuso “atrasado” confere aos hermanos uma cultura repleta de hábitos noturnos, à diferença que, quando o sol assoma no horizonte bufando seus vapores cálidos em nossas praias discretas e exuberantes logo às cinco da manhã, só o fará em Buenos Aires duas horas depois, muito embora o fuso adotado seja o mesmo, e a despeito de que, muito provavelmente, o fuso seja o único aspecto que de algum modo nos irmane a nossos hermanos. No mais, a Argentina constitui a antítese perfeita ao regime solar destas paragens e, para minha completa desolação, constato que a adoção do horário “adiantado” de Brasília é muito antiga e já está irrevogavelmente entranhada no modus vivendi dos paraibanos, tal como o rubacão – prato típico daqui –, a carne de sol e o onipresente cuscuz, ou seja, o regime horário aqui adotado é parte inalienável de sua cultura. Lutar pelo contrário seria causar intrigas à toa, seria sobretudo uma bisbilhotagem etnocêntrica que só redundaria em mais polêmicas inócuas.

O fuso de Brasília, vigorando sem alarde nas Parahybas, faz com que tenhamos um período matutino específico, e que antecede a manhã funcional propriamente dita. Em outras regiões do país, devido a menor distância temporal entre o nascer do sol e o início do expediente de trabalho, não se dispõe de tanto tempo livre até que nos submetamos religiosamente às demandas pachorrentas de nosso eterno cotidiano. Acordamos, escovamos os dentes, tomamos apressadamente um café e saímos, muitas vezes sobressaltados, para nossos respectivos trabalhos a fim de perpetuar nossa sina extenuante, pagar os boletos e retardar qualquer reviravolta que possa nos eximir deste intragável Brasil. Nas Parahybas, se acordarmos com o sol ainda em suas primícias de alvorada, é possível, tal como diria com muita perspicácia Ezra Pound, “chacoalhar o orvalho da manhã com os coelhos” e, antes de cumprirmos o rito insípido e maçante do trabalho, nos dedicar a outras atividades, talvez mais amenas: para os mais privilegiados, fazer uma caminhada ou uma sessão de yoga kundalini na orla assistindo ao sol imponente se levantar no horizonte em alto mar, ainda inofensivo; e para aqueles que não têm a mesma sorte, dedicar-se à organização do dia, preparar as crias para o colégio ou a marmita para o almoço, tudo isso bem antes de que o astro-rei, às oito da manhã – em brasa e fustigando nosso lombo já crispado de açoites solares – convoque as Paraíbas ao jugo diário de sua violência abrasiva.

Há também uma outra peculiaridade digna de menção. Juan Persona, ao contrário de outras capitais litorâneas que floresceram ou foram se deslocando à beira-mar, nasceu às margens do rio, completamente alheia aos influxos marítimos – e num local bem distante das praias. Foi somente a partir da segunda metade do século XX que a cidade passou a contemplar com os olhos marejados suas esplêndidas praias e seu mar camomílico sob uma outra ótica. Isto se deu, em maior ou menor grau, a partir da abertura da Epitácio Pessoa, avenida responsável por ligar o parque Sólon de Lucena, encravado no centro histórico, à praia de Tambaú. Estamos falando, portanto, de uma cidade que passou a maior parte de sua existência (pelo menos quatro séculos) ensimesmada em seus hábitos fluviais, absorta em sua defesa pernambucana e, uma vez desperta de suas obstinações tubérculas, timidamente – e aqui é preciso repetir: muito timidamente – foi-se expandindo rumo a leste à medida que a medicina preconizava banhos de mar como terapia a determinadas afecções e que os brasileiros, de um modo geral, descobriam as benesses proporcionadas pela vida vivida longe da brenha e perto da beira. Uma vida distinta, e sobretudo distintiva, dado que fruir a vida à beira-mar é privilégio de poucos e, uma vez assentados na beira, desfruta-se ainda da prerrogativa belíssima e alienante que reside na visão alijada do continente e de suas ecléticas desgraças, numa espécie de síndrome oceanocêntrica à moda Dorival Caymmi, quem, obcecado pelo mar, assistia ao voo plácido do albatroz, à pesca sazonal da tainha, à periclitante tremulina da maré baixa, refestelando-se de belezas líricas em tudo, muito embora, em sua retaguarda, nossa tragédia brasileira grassasse de vento em popa, consumando com sua desfaçatez os mais plenibundos tormentos, atribulações e infortúnios nem tão líricos assim.

Esse processo relativamente recente e paulatino da “descoberta” do mar engendrou um profundo contraste em Jampa. Há uma divisão clarividente e acentuada entre os bairros que se espraiam pela região litorânea e aqueles enquistados na parte alta da cidade ou à beira-rio. Estes últimos, antiquíssimos, conformam justamente o centro histórico expandido da capital, fundada em 5 de agosto de 1585 e erigida às margens do rio Sanhauá – voltada a oeste. Sua vantagem consiste justamente na localização privilegiada para assistir ao pôr do sol – chamemos essa região de Havana. Já os bairros praieiros – onde vivo –, com seus prédios novíssimos, oferecem a abundância de bons restaurantes, uma formidável rede hoteleira e edifícios que padecem do mal-gosto predominante da arquitetura pós-moderna, além de contarem, por sua vez, com uma localização perfeita para a contemplação do nascer do sol – chamemo-los de Miami2

E como qualquer outra capital terceiro-mundista, com suas vísceras efervescendo numa espécie de louvor zoroástrico e apático, avesso a qualquer mudança, João Pessoa conserva rigorosamente seus contrastes extremos. Em contrapartida, por estar situada entre o mar e o rio, proporciona aos habitantes desse fla-flu urbano ambos os fenômenos, cada qual a seu modo. Não seria exagero afirmar, com alguma dose de juízo condescendente, que Havana e Miami, a despeito de suas desigualdades discrepantes, tão peculiares à nossa malsinada América Latina, conservam ainda algum verniz democrático no que diz respeito ao acesso que seus habitantes têm ao fenômeno diário do nascimento e ocaso solar.

Para a tarefa que me foi atribuída, ou seja, aquela de retardar la puesta, estabeleci de antemão um roteiro a ser percorrido a pé, com paradas em três pontos de observação em pleno coração do famigerado centro histórico: o Hotel Globo, a Casa da Pólvora e a rua General Osório, uma vez que estas três “estações de contemplação” possuem, respectivamente, altitudes ascendentes. 

Munido dos itens necessários à humildade pedestre, saí de Miami rumo a Havana faltando exatamente cinco minutos para as 16:00 horas  – é preciso chegar cedo uma vez o que pôr do sol começa às 17:14. 

Entro no ônibus e, como sempre, me deparo com a presença predominantemente feminina em seus assentos, o que me leva a refletir nessa prevalência de gênero. Ora, as famílias menos abastadas, quando muito, possuem uma moto, mas aqueles que a utilizam são, via de regra, os homens, relegando às mulheres a utilização exclusiva do transporte público – um aspecto típico e marcante do machismo que ainda predomina sobejamente num país que, de lambuja, ainda conta com um misógino do pior quilate manipulando com suas mãos de morsa o leme de uma embarcação à deriva. 

A essa hora, o trânsito é calmo por me deslocar no contrafluxo, de modo que o trajeto até Havana – atravessando os manguezais repletos de plástico, bairros humildes e algumas repartições públicas batizadas com nomes proparoxítonos – se desenrola tranquilo e sem sobressaltos. Desço num ponto de ônibus, já no bairro do Varadouro, próximo à antiquíssima e decadente rua da Areia, ainda famosa e temida por seus bordéis e pela presença, outrora esplendorosa, hoje tímida, de prostitutas e de algum incipiente tráfico de drogas. Em seguida, me dirijo ao Hotel Globo, um edifício imponente construído em 1928 em estilo Neoclássico, atualmente convertido em centro cultural. O Hotel oferece uma vista esplêndida ao rio Sanhauá. De seu mirante balaustrado, passo a contemplar o rio nas adjacências de onde a cidade nasceu, mais precisamente a partir do Porto do Capim. Encontro-me, nesse exato momento, a cerca de trezentos metros de suas margens, em cuja mata ciliar imperam as espécies típicas do mangue, aqui relativamente bem preservadas. Para além do rio, o horizonte nos revela uma porção generosa de Mata Atlântica quase intacta – responsável por conferir um aspecto selvagem à vista de todos – e, em terceiro plano, extensos e exauridos canaviais: um cenário que remete qualquer amigo da leitura ao fogo-morto e à bagaceira, fenômenos típicos da monocultura, eternizados e tão bem esmiuçados pelo parahybaníssimo José Lins do Rego. 

Em Juan Persona, insisto, a contemplação do pôr do sol é algo tão bem assimilado por parte de seus habitantes que o fenômeno, observado a partir do Hotel Globo, da Casa da Pólvora e da rua General Osório, é parte inerente de sua cultura urbana. Dali de onde me encontro, além dos sempiternos turistas, há também muitos pessoenses: noivos que aproveitam a luz áurea e diáfana proporcionada pela puesta para eternizar o momento idealizado em sessões fotográficas, transeuntes inadvertidos ou interessados como eu, e inclusive policiais militares que, em seus breves momentos de descanso e distração, se valem do espetáculo público e gratuito que generosamente oferece a seus olhos inquisidores a beleza diária e apaziguante de que todos precisamos para ludibriar as sórdidas imagens que abundam com desenvolta desfaçatez em território tupiniquim. 

O relógio marca exatamente 16:35 quando faço os primeiros registros fotográficos, mas não posso me deter muito por ali, pois é preciso dar sequência a minha flânerie e não perder o pôr do sol nos dois destinos que me faltam. Saio do Hotel Globo um pouco afanado e resfolegante e parto direto à Casa da Pólvora. Durante o curto trajeto até lá, passo a divagar sobre esses valiosos momentos dedicados à caminhada e sou atravessado por uma sensação plena de contentamento. Nestas ocasiões, é inevitável não pensar em pedestres notáveis, porém mais afeitos à introspecção, como Baudelaire e suas deambulações parisienses sob os efeitos malincônicos do spleen de Paris e, obviamente, como o decrépito porém inquieto e genioso Rousseau, cuja obra Les rêveries d’un promeneur solitaire nos proporciona ideias e meditações luminosas oriundas de seus incansáveis passeios a pé pelos arredores da capital francesa. Minha fruição, porém, destoa em muito das emoções nutridas por esses inconfundíveis escritores e se reveste de uma índole diametralmente oposta. A caminhada, seja ao pôr do sol, seja sob uma chuva fina e suportável, não exerce sobre mim seus desdobramentos lúgubres. A sensação que os passeios pedestres infundem em meu espírito turvado e em minha índole macambúzia servem precisamente como um antídoto às situações adversas. É como se eu estivesse plenamente integrado à cidade, como se eu, na condição de observador externo, passasse, subitamente, a ser parte viva e inerente do cenário urbano. Uma sensação que corrobora a tão solapada ideia de que o melhor de determinado lugar são justamente as pessoas que o habitam, aquelas que fazem com que a cidade pulse sua vitalidade exuberante e flua em seu desatado fluxo cotidiano, a despeito de todas as mazelas inerentes à vida nas capitais, responsáveis por reduzir nossa expectativa de vida a níveis catastróficos. Meu entusiasmo pelo fator humano, tal como o de Caymmi pelo mar, beira à obsessão, de tal modo que, em meus planos e conjecturas sobre possíveis destinos de viagem, jamais fizeram parte desse rol os desertos que, se por um lado oferecem paisagens esplêndidas e uma via desimpedida ao mis-en-abîme, melhor amiga do sublime, por outro, carecem da presença e do calor humano tão peculiares aos trópicos. Ainda descendo ladeiras digressivas, se por ventura me fosse concedida a oportunidade de conhecer destinos desprovidos de uma taxa demográfica aquém daquela que considero razoável, preferiria, sem qualquer nesga de dúvidas, as florestas amazônicas, as planícies encharcadas de arroz no Vietnã e até mesmo os inúmeros vales e desfiladeiros da exótica e dispendiosa Rota da Seda, porém nunca, jamais, sob hipótese alguma, o instagrâmico Salar de Uyuni, o motoclubístico deserto do Atacama e as terríveis e coruscantes sessões fotográficas registradas em pleno deserto desprovido de vida no Qatar.

Às 16:39, parto do Hotel em direção à Casa da Pólvora, para tanto, entro pela rua Padre Pereira passando pela histórica praça Antenor Navarro. Embora abril seja um mês quente, as últimas horas da tarde costumam ser amenas e com ventos abundantes, de modo que o trajeto que faço até minha segunda parada se desenrola numa atmosfera agradável. Ao sair da Padre Pereira, entro na Ladeira São Francisco, primeira rua da cidade e, em minha penosa subida, aproveito para contemplar também seus edifícios – alguns deles erigidos ainda no século XVIII. Após alguns minutos de escalada, é inevitável não fazer uma analogia com o Pelourinho de Salvador e com a eloquente e acentuada Ladeira da Misericórdia na pernambucana Olinda, ambas cidades antiquíssimas e repletas de ruas íngremes.

Uma vez na Casa da Pólvora, passo à coleta de algumas informações importantes. Trata-se da única casa remanescente que servira de arsenal no imenso esforço colonial português em manter suas imensas possessões longe das investidas de franceses e holandeses. Concluída em 1704, sua arquitetura conserva as principais características dos edifícios seiscentistas: as colunas em pedra calcária entalhada e teto abobadado erigido com tijolos e argamassa. A fachada do edifício está voltada ao poente, de modo que dali se pode observar o estuário do rio Paraíba e Porto do Capim, tendo como cenário de fundo a já mencionada reserva ecológica, além uma vista frontal estupenda do pôr do sol. Em minha breve visita ao local, me deparo com casais namorando enquanto aguardam a morte diária do dia, alguns adolescentes aproveitando-se do momento para fumar um baseado nesse cenário inspirador capaz de potencializar brisas, e inclusive um cavalo baio, pastando calmamente na grama do montículo encimado pela Casa. O edifício, erguido em local estratégico e com sua porta virada ao poente só confirma a vocação da cidade para a contemplação da puesta

Tiro mais algumas fotos às 16:47 e me preparo para a golden hour em meu último destino, a rua General Osório. Este último trecho de minha flânerie abriga o núcleo monumental da cidade. Passo primeiramente pelo Colégio e Internato Nossa Senhora das Neves e, logo em seguida, pela Basílica de mesmo nome, cuja construção, em estilo eclético, se iniciou com a fundação da cidade, em 1586. A título de curiosidade, João Pessoa, terceira capital mais antiga do Brasil, em seus quase quinhentos anos de história, teve diversos nomes, começando por Nossa Senhora das Neves – homenageando a santa padroeira da cidade; depois Filipéia, em honra e louvor ao rei Felipe de Espanha, já que o reino de Portugal estava sujeito à Coroa Espanhola naquele então; em seguida Frederikstad (durante a invasão neerlandesa), mais conhecida como Frederica ou Frederícia – as fontes discrepam –, pois seus habitantes à época tinham pouca familiaridade com o idioma falado nos Países Baixos; e por fim Parahyba, este último o mais duradouro, tendo sido substituído somente em 1930 em virtude da morte do político João Pessoa, vítima de um crime passional cujos desdobramentos conferiram uma “motivação política” que serviria de estopim à Revolução de 1930 e à ascensão de Getúlio Vargas ao poder.

Feita esta pequena porém imprescindível digressão, sob os bons e indiferentes auspícios de Nossa Senhora das Neves a um ateu graças a Deus, viro à direita e adentro finalmente à rua General Osório, talvez um dos pontos mais altos da cidade. Passo defronte à Igreja e Mosteiro de São Bento e chego a meu destino final, a General Store, um bar de cuja varanda seus frequentadores costumam assistir às cenas finais do pôr do sol feérico e, naquele dia, em especial, incandescente. 

Por fim, já de olhos marejados, clamando para que aquele momento se demorasse mais um pouco, embora eu soubesse que ele se eternizaria na memória e no registro que ora vos exponho, rememorei alguns momentos atribulados e repletos de tristura por que havia passado nos últimos meses, transido pela insegurança que me suscitava perguntas do tipo “que diabos vim fazer nas Paraíbas?!” e coisas do gênero, e me lembrei da calorosa recepção que me ofereceram sem nenhuma contrapartida, da sensação de me aproximar da praia e sentir o cheiro de sal emanando das ondas, e recordei os ventos fartos que evocam bons agostos em seu curso irrefreável arrefecendo nossos corpos na horas mais quentes do dia, e inclusive das derrotas retumbantes protagonizadas pelo Botafogo-PB – há mil times que perdem, nenhum, porém, perde tão convictamente como o Belo. E assim, em meio a tantos pensamentos disparatados, tantas imagens prolíficas se desencadeando perante meus olhos incrédulos, tive o prazer de constatar e compreender, subitamente, para o desespero inconsolável de minhas quimeras e para a consternação geral de minhas dores, o que havia me levado até ali.

Pego umas cervejas no bar e me preparo para fazer meus últimos registros. Nesse exato momento, sou tomado pela sensação ambígua de estar perdendo a puesta justamente por estar aferrado à minha câmera de celular, tal como os demais ali estão, numa espécie de devoção religiosa não se sabe por quem, se ao Sol, se ao digital. À revelia desses pensamentos – só fiquei torcendo para que nenhum infeliz aplaudisse o pôr do sol – foquei na câmera que, por sua vez, concentrou suas lentes no panorama de abril, revestido por uma luz inefável, uma aura que converte qualquer babaquara como eu num fotógrafo formidável, e assisti, como pude, ao desfile meteórico de sua paleta de cores, começando num azul cerúleo que, paulatinamente, foi cedendo espaço a um rosa pálido e, minutos depois, a um laranja candente que me remeteu aos horizontes secos da Califórnia, até atingir seu apogeu numa profusão de cores tais que me peguei a comparar – já arrebatado e genuflexo, quase puxando o primeiro aplauso – se algum dia presenciara pôr do sol semelhante. E bem, depois de algumas ponderações, cheguei à óbvia conclusão de que não, nenhum pôr do sol sob o céu borrado e levemente filtrado por nuvens que se estendiam no horizonte em dose certa, nenhuma vista, com o olhar concentrado sobre o Hotel Globo – minha primeira parada, lá embaixo –, cuja silhueta era agora banhada por uma luz oblíqua e anêmica, assumiu uma tonalidade baça, destacando-se naquela orgia policromática e conservando, a despeito de sua incorruptível brancura, alguma dignidade histórica. 

  1. Texto redigido para integrar o projeto Retardar la puesta, de Jean Palavicini, cujo intuito era desafiar pessoas e sua relação com o pôr do sol, de modo que, numa caminhada ou contemplação vespertina, tentássemos, através de nossas perambulações, retardar o momento irrevogável do pôr do sol. O projeto se destinou à obtenção do título de mestre em Artes pela Universidade de Córdoba – Argentina.  ↩︎
  2. Na dicotomia entre Miami e Havana, valho-me grosseiramente da definição proposta pelo filme-documentário Miami-Cuba, dirigido por Caroline Oliveira, sobre o centro histórico pessoense e as diferenças entre se viver na beira ou na brenha. ↩︎


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